I am large, I contain multitudes, escreveu Walt Whitman em 1855, com ecos que chegam até hoje através de Bob Dylan, Lana del Rey ou este texto. Talvez qualquer coisa fundamental do espírito do nosso tempo caiba mesmo nesse verso.
Todos temos a experiência de não nos sentirmos exactamente a mesma pessoa em diferentes cenários. Ficamos mais infantis quando estamos com os nossos pais, terrivelmente patetas quando queremos impressionar alguém que achamos interessante, estranhamente confiantes se precisamos de reconfortar uma criança assustada. Ou o oposto de tudo isto – a lista não acaba e é diferente para cada um. Assim sendo, o que fazer com a ideia de continuidade (self-continuity) de que nos fala Nancy McWilliams no vídeo que lançou esta série de posts sobre saúde mental?
Continuidade, diz a autora, é o sentimento de sermos essencialmente os mesmos ao longo do tempo e em diferentes lugares. No sentido em que, por exemplo, épocas da nossa vida muito distintas entre si, ou diferentes experiências e estados subjectivos, são por nós sentidas como etapas e facetas pertencentes à mesma pessoa. Episódios da mesma história. Há quem chame a isto ter uma identidade integrada, em contraste com uma identidade difusa – em que não retiramos das experiências um sentido diferenciado de quem somos (gostos, valores, opiniões, formas de ser, objectivos, etc.). Este sentido de uma identidade integrada é qualquer coisa que vai sendo construída ao longo da vida, numa mistura que vamos cozinhando entre as imagens que outros têm de nós, aquilo que observamos em nós mesmos e desejamos ser e as coisas que importamos de modelos mais próximos ou distantes (receita de um mestre português). Como em todos os cozinhados, é uma criação única que depende sempre, para o melhor e para o pior, dos ingredientes e da arte do chef.
O que se passa quando falha este sentimento de continuidade? Nova metáfora: podemos pensar na identidade como um território nacional. Ele pode ser contínuo e permitir-nos viajar através de regiões e paisagens muito distintas, sabendo que estamos ainda no mesmo país. Também pode ser um arquipélago, feito de algumas ilhas mais próximas e outras mais distantes, e em que a circulação de umas para as outras é umas vezes mais fácil e outras menos. O que sente um adolescente comum se juntar pais e amigos à mesma mesa é um exemplo das dificuldades de navegar entre “ilhas de identidade”. Que, ainda assim, compõem um país.
Finalmente, o território pode ser um conjunto de ilhas dispersas que se desconhecem entre si, e então falamos já de fragmentação e da perda de um sentido de conjunto. Neste caso, a experiência que temos de quem somos é descontínua, muda drasticamente à medida que se alteram os nossos estados subjectivos. Normalmente, isto implica também que a imagem que temos dos outros sofre da mesma descontinuidade. Constantemente, grandes amigos passam subitamente a ser canalhas sem qualidades. Ou pode ser uma dificuldade mais circunscrita: uma pessoa que nos viu num momento de fragilidade é de repente banida das nossas relações, porque não toleramos na nossa auto-imagem aquela parte de nós. Nos piores casos, é mesmo como se fôssemos várias pessoas diferentes, uma de cada vez. Quando damos por nós numa destas ilhas dispersas, perdemos de vista todas as outras e o nosso país/identidade parece limitar-se a este fragmento particular.
Na prática, são estes mecanismos de dissociação e de clivagem que estão em marcha quando, por exemplo, temos uma ideia de nós mesmos ou de outra pessoa como completamente boa ou completamente má. Até uma certa idade, separamos desta maneira as nossas experiências gratificantes das que nos causam angústia ou frustração. É útil para a organização emocional das crianças ouvir as histórias da princesa boa e da bruxa má, dos heróis e dos vilões e outras dicotomias semelhantes. O adulto saudável, entretanto, percebe que somos todos feitos da mesma massa, cheios de egoísmo e altruísmo, nobreza e mesquinhez, de defeitos que são qualidades e qualidades que são defeitos, de nuances, subtilezas e contradições (I wanna go out but I wanna stay home, grita Courtney Barnett), e é desta noção que nasce a possibilidade de empatia. Quando damos por nós a pensar que há pessoas boas e más, com bom fundo ou mau fundo, etc., os nossos alarmes devem disparar. É provável que estejamos a dissociar partes nossas, que só vemos projectadas nos outros. Ou a confundir o que uma pessoa nos faz sentir com o que ela é (essa besta!) ou o que somos (não presto para nada!). Todos fazemos isso em algum grau quando temos que digerir uma experiência muito dolorosa. Todos precisamos de tentar não cristalizar a nossa visão nessas fórmulas simples.
Uma ideia final neste texto já longo. Todos contemos multidões, todos somos arquipélagos mais ou menos coesos. Numa era mais virada para múltiplos selves do que para identidades monolíticas, a arte da continuidade pode ser a de standing in the spaces entre ilhas. Sentindo-nos como um apesar de sermos muitos. Cultivar a continuidade talvez seja mais este processo flexível de navegação do que a afirmação absolutista e às vezes “bélica” de uma identidade. Quando, bem ou mal, nos sentimos ameaçados, erguemos a nossas defesas, tornamo-nos rígidos e simplistas. Mas, no fim, importa mais o território do que o mapa.
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